INTRODUÇÃO
O que faz mais de 5 mil pessoas se manifestarem perante a alteração da paisagem de seu município? O quão incontestável é a visão de “progresso” fomentada por alguns representantes do mercado imobiliário?
Numa perspectiva geográfica, a mobilização da sociedade civil organizada de Atibaia em relação ao tema da verticalização vai muito além de uma questão estética, evidenciando o próprio vínculo entre cidadão e município.
Neste texto me esforcei para trazer, além de referenciais acadêmicos e jurídicos, o que presenciei no cotidiano da cidade, valorizando a esfera do “vivido” no processo de discussão democrática acerca da transformação urbana da estância de Atibaia.
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CIDADANIA
A Constituição Brasileira de 1988 é também conhecida pelo nome de “Constituição Cidadã”, tanto pelo momento histórico em que foi gerida (pós-ditadura militar), quanto pelo seu papel progressista no estabelecimento dos nossos direitos enquanto cidadãos brasileiros.
Dentre os muitos marcos democráticos instituídos, dou destaque para seu Artigo 170, o qual define que a ordem econômica deve seguir os ditames da justiça social, observando princípios como a função social da propriedade, e a defesa do meio ambiente.
Função social da propriedade:
A função social consiste na utilização da propriedade, urbana ou rural, em consonância com os objetivos sociais de uma determinada cidade. A função social impõe limites ao direito de propriedade, para garantir que o exercício deste direito não seja prejudicial ao bem coletivo. Isto significa que uma propriedade rural ou urbana não deve atender apenas aos interesses de seu proprietário, mas também ao interesse da sociedade (GOMES; MORAES, 2019, para.10, grifo meu).
Defesa do meio ambiente:
Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao poder público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações (BRASIL, 1988, art. 225, grifo meu).
Para garantir que tais princípios sejam promovidos por parte do poder público, existem algumas ferramentas legais disponíveis, como o Plano Diretor municipal.
Plano Diretor:
(…) cabe ao plano diretor criar as bases para uma cidade inclusiva, equilibrada, sustentável, que promova qualidade de vida a todos os seus cidadãos, reduzindo os riscos do crescimento desenfreado e distribuindo de forma justa os custos e benefícios da urbanização. Além disso, o plano diretor fornece transparência para a política de planejamento urbano, ao instituí-la em forma de lei (PRIETO; MENEZES; CALEGARI, 2017, para.36, grifo meu).
O Plano Diretor é basilar no que tange a legislação municipal, pois ele possui uma “ordem hierárquica maior” em relação a outras leis do município, como a Lei de Uso e Ocupação do Solo, a Lei de Diretrizes Orçamentárias, entre outras.
Dessa forma, o poder público municipal tem a obrigação de incorporar os princípios da função social da propriedade e da defesa do meio ambiente em todo seu planejamento e regramento, seguindo a carta magna da sociedade brasileira.
PAISAGEM, PATRIMÔNIO, E IDENTIDADE
Com origem ligada à arte, o conceito de paisagem é caro à ciência geográfica, pois é ele que trabalha a relação interativa entre o natural e o social, na medida em que explora a cultura, o patrimônio, a identidade e as representações no território (ROSS, 2006).
Desta forma, o olhar aqui proposto para a paisagem deve compreender que a mesma é constituída tanto por camadas de rocha, quanto por estratos de memória (SCHAMA, 1995). E embora tal noção possa soar estranha a certas pessoas em outros contextos, tenho absoluta certeza que, aqui em Atibaia, tal conceito de paisagem pode ser absorvido com facilidade.
Embora a ocupação urbana do município tenha se expandido muito além da colina do centro histórico pintada por Benedito, os principais elementos presentes na obra de arte continuam compondo a paisagem de Atibaia: o rio ainda cruza seu território, servindo como um corredor de biodiversidade no eixo leste – oeste, além de contribuir com o abastecimento de água municipal; e a Serra permanece com sua presença icônica e simbólica perante os habitantes do burgo, abrigando os principais fragmentos preservados de vegetação nativa, habitat bem conservado de centenas de espécies de animais, sendo alguns endêmicos, e ameaçados ou em risco de extinção.
Infelizmente o rio que dá nome ao nosso município é mais lembrado na época de chuvas do que no dia a dia da população. Mas, por outro lado, a Serra do Itapetinga marca sua presença de forma massiva: sua forma é vista de praticamente todo o município.
Todavia, como a paisagem é formada não apenas pelo o hoje, mas também pelo ontem, é crucial lembrar que a manutenção dos elementos citados e ilustrados não pode ser assumida como natural ou gratuita. Apesar de conter algumas cicatrizes paisagísticas (como um prédio de mais de 10 andares na rua mais antiga da cidade, defronte a um dos nossos patrimônios culturais municipais, a Igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos), o centro histórico municipal felizmente é reconhecido no zoneamento municipal como um território de regramento especial, sendo que esta lei deve “Preservar, como referencial histórico e cultural, o padrão de implantação da cidade de Atibaia, em acrópole, sobre a colina situada entre o vale do Rio Atibaia e os vales dos Córregos dos Pintos e Piqueri (ATIBAIA, 2015, p.39)”.
Já o Rio Atibaia, combalido por dejetos e pela perda de mata ciliar, possui uma unidade de conservação que busca zelar pela sua qualidade, essencial às espécies animais e humanas que fazem parte de sua bacia hidrográfica.
Por último, e de forma tão emblemática quanto sua própria figura, a Serra do Itapetinga, após ter sido alvo de empreendedores (mineração, loteamento e outros), conseguiu mobilizar a população de Atibaia pela sua proteção, em um movimento socioambiental e cultural que teve respaldo não só no município, mas em todo o estado de São Paulo.
Acredito não ser coincidência que, junto à população de Atibaia, um geógrafo tenha tido papel tão importante para o tombamento da Serra em 1983. O professor Aziz Nacib Ab’Saber, então presidente do Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico Arqueológico, Artístico e Turístico do Estado de São Paulo (Condephaat), com certeza notou “as camadas de rocha e os estratos de memória da Pedra Grande”, reconhecendo nossa Serra como um patrimônio paisagístico.
Patrimônio:
O patrimônio é o legado que recebemos do passado, vivemos no presente e transmitimos às futuras gerações. Nosso patrimônio cultural e natural é fonte insubstituível de vida e inspiração, nossa pedra de toque, nosso ponto de referência, nossa identidade (UNESCO, 2017, p. 1, grifo meu).
Mais uma vez, vemos que há um nexo entre paisagem, patrimônio e identidade. E se as Nações Unidas não é clara o suficiente, coloco aqui o principal símbolo oficial de Atibaia, o brasão municipal:
Dito isso, não é exagero afirmar que a identidade dos cidadãos de Atibaia está umbilicalmente ligada a Serra do Itapetinga e sua Pedra Grande.
De fato, na audiência pública de discussão do Plano Diretor do município em 07 de dezembro de 2020, foi ilustrativo que um munícipe abriu sua fala exaltando sua história com a Serra: “Isso é só pra entender um pouco a minha história com a cidade, numa forma bem resumida: 7 anos de idade, a primeira vez que eu subi na Pedra Grande” (LAXE, 2020, 1h58m15s).
A Serra é nosso patrimônio, e, numa perspectiva cidadã – isto é, alinhada com os princípios elencados na nossa constituição federal – o desfruto dessa paisagem é direito de todos.
Felizmente, a Serra do Itapetinga e a Pedra Grande foram alçadas a unidades de conservação no ano de 2010 (Parque Estadual e Monumento Natural, respectivamente), unindo a valorização social e cultural do patrimônio, com a importância ecológica para toda a região.
No entanto, assim como o centro histórico, nossa Serra corre o risco de ser um enclave protegido. Embora o centro e as unidades de conservação tenham seus limites bem delimitados, seu entorno é fraco. E aqui chegamos na maior motivação para a escrita desse documento: os prédios.
VERTICALIZAÇÃO E ADENSAMENTO
Destarte, é importante dizer que a verticalização pode ser um fenômeno tanto positivo quanto negativo em uma cidade. Se de um lado foi justamente a preocupação com a altura dos edifícios e seus impactos nos imóveis vizinhos que estimulou a criação de um zoneamento a nível municipal pela primeira vez na Nova Iorque de 1916 (SABOYA, 2018), é também o adensamento populacional um dos principais caminhos para a otimização da infraestrutura urbana, podendo contribuir inclusive indiretamente para a manutenção de áreas verdes. Aqui, a pergunta pertinente a se fazer não é “Prédio, sim ou não?”, mas sim: “Prédio, onde, e de qual altura?”. Espigões verticais não devem ser considerados como única alternativa para o adensamento populacional pensando em mobilidade e infraestrutura. Como disserta muito bem Tanscheit:
Talvez o que permeie essa “disputa” seja o exagero das alturas. Quando planejadores urbanos descobriram os benefícios de desenvolver densidades, eles logo pediram por prédios altos, quanto mais altos, melhor, para acomodar mais pessoas. Porém, não precisa ser assim. Quadras podem abrigar diversas edificações de baixa e média altura e atingir grandes densidades. Talvez a melhor forma de ilustrar isso seja o bairro Eixample, em Barcelona, que abriga 35 mil habitantes por quilômetro quadrado (densidade considerada alta) – em prédios de cinco andares na média (TANSCHEIT, 2016, para.7).
E nem só Barcelona nos traz exemplos de adensamento de baixo impacto. Atibaia tem uma quadra quase exclusiva de ocupação vertical, com prédios de sete andares na média em um local de baixa topografia, e posição privilegiada na hierarquia do sistema viário:
Tal arranjo de adensamento é estratégico na redução de impactos na vizinhança. A predominância de prédios homogêneos, de baixa altura, reduz a incidência de sombra em edifícios menores, além de mitigar o impacto paisagístico no entorno.
Com efeito, o contexto em que se promove o adensamento é um fator essencial na análise de verticalização, sendo a relação do prédio com o entorno justamente um dos critérios de análise de verticalização pelo Conselho de Edifícios Altos e Habitat Urbano (Council on Tall Buildings and Urban Habitat – CTBUH, no original). Na lógica do CTBUH, embora um prédio de 14 pavimentos possa ser considerado um edifício padrão em Chicago ou Hong Kong, ele provavelmente será considerado um prédio alto em uma cidade do interior europeia (CTBUH, [201-]).
Trazendo para o nosso contexto: embora um prédio de 20 andares possa ser “normal” para a capital paulista, ele representa uma ruptura na paisagem urbana de Atibaia, ou seja, uma quebra de paradigma.
Levando em consideração todo o exposto anteriormente neste documento, acerca da relação entre paisagem, patrimônio e identidade, não é de se surpreender que a chegada de projetos de edifícios de 20 e 30 andares na estância turística de Atibaia seja um processo que resulta em conflito (vide: <https://www.change.org/p/contra-a-verticaliza%C3%A7%C3%A3o-desenfreada-e-expans%C3%A3o-desorganizada-da-cidade-de-atibaia?>. Acesso em: 14 de jan. de 2021). A construção de torres desse porte possivelmente põe em xeque o patrimônio paisagístico do município.
MUITO BEM, E AGORA?
Entendo ser essencial que a sociedade civil continue se manifestando perante os projetos em que haja conflito, pressionando não apenas os empreendedores, mas, principalmente, o poder público.
Em paralelo, é essencial que a Câmara Legislativa e o Ministério Público exerçam suas funções de fiscalização da Prefeitura, contribuindo para que o interesse coletivo seja colocado em 1º lugar, conforme garantido pela nossa Constituição Cidadã.
E, por último, mas definitivamente não menos importante, que a Prefeitura da Estância de Atibaia reconheça a legitimidade da requisição dos munícipes, utilizando as ferramentas disponíveis para corrigir as brechas da lei vigente, tais como as limitações administrativas, que podem congelar os processos de aprovação de empreendimentos enquanto a lei não for atualizada.
Tal ferramenta já foi utilizada, por exemplo, na cidade de Louveira, em que o prefeito do PSD – mesmo partido do nosso prefeito! – decretou a suspensão da tramitação dos processos de aprovação de empreendimentos (incluindo desdobros) por 180 dias, visando “garantir que todas as regras fixadas no Plano Diretor sejam respeitadas, especialmente no que se refere ao meio ambiente, às questões de urbanismo e aos direitos sociais da população” (PREFEITURA DE LOUVEIRA, 2021, para.3).
Que Louveira sirva como um exemplo a ser seguido, e que Atibaia continue com sua “paisagem cidadã”, sendo uma referência de qualidade de vida não apenas nos anúncios publicitários dos empreendimentos do mercado imobiliário, mas também a todos os moradores, mesmo aqueles que não podem adquirir um apartamento no 20º andar de um prédio com vista para a Serra do Itapetinga.
Francisco Napolitano Leal,
Geógrafo, Mestre em Planejamento Territorial e Política Ambiental, Mestre em Estudos da Sociedade e Meio Ambiente, e membro do Coletivo Socioambiental de Atibaia.
Com valiosa revisão da colega Maria Teresa da S. P. Marques, Mestre em Ciências, e também parte do Coletivo Socioambiental de Atibaia.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ATIBAIA. Lei Complementar nº714, de 05 de agosto de 2015. Institui a Legislação de Uso e Ocupação do Solo da Estância de Atibaia, e dá outras providências. 2015. Disponível em: <http://prefeituradeatibaia.com.br/imprensa/pdf/2015/1717%20B.pdf>. Acesso em: 14 de jan. de 2021.
BRASIL. Constituição de 1988, artigo 225. 1988. Disponível em: <https://www.senado.leg.br/atividade/const/con1988/con1988_26.06.2019/art_225_.asp>. Acesso em: 14 de jan. de 2021.
CTBUH – Council on Tall Buildings and Urban Habitat. Tall building criteria. CTBUH, [201-]. Disponível em: <https://www.ctbuh.org/resource/height>. Acesso em: 14 de jan. de 2021.
GOMES, C.; MORAES, I. Inciso XXIII – Função Social da Propriedade: “A propriedade atenderá a sua função social”. Politize!, 2019. Disponível em: <https://www.politize.com.br/artigo-5/funcao-social-da-propriedade/>. Acesso em: 14 de jan. de 2021.
LAXE, M. Manifestação em audiência pública do Plano Diretor de Atibaia [7 de dezembro, 2020]. Atibaia: Câmara Legislativa da Estância de Atibaia. Disponível em: <https://www.camaraatibaia.sp.gov.br/?pag=T0RnPU9EUT1PR1k9T0dFPU9UYz1PVEE9T0RnPU9XWT1PVEk9T0dZPU9UQT1PV009&categoria=14&tipo=Videos&idGaleria=&p=0&galeria=578>. Acesso em: 14 de jan. de 2021.
PREFEITURA DE LOUVEIRA. Decreto suspende aprovação de condomínios e loteamentos e prevê pente-fino nos 5 últimos anos: Medida vale por 180 dias e inclui análise caso a caso de todas as liberações de projetos desde 2016 na cidade. 2021. Disponível em: <https://www.louveira.sp.gov.br/conteudo/decreto-suspende-aprovacao-de-condominios-e-loteamentos-e-preve-pente-fino-nos-5-ultimos-anos>. Acesso em 14 de jan. de 2021.
PRIETO, I.; MENEZES, M.; CALEGARI, D. Plano diretor: como é feito e para que serve?. Politize!, 2017. Disponível em: <https://www.politize.com.br/plano-diretor-como-e-feito/>. Acesso em: 14 de jan. de 2021.
ROSS, J. L. S. Ecogeografia do Brasil: subsídios para planejamento ambiental. São Paulo: Oficina de textos. 2006.
SABOYA, R. T. Zoneamento e planos diretores v.2.0 – parte 1. Urbanidades, 2018. Disponível em: <https://urbanidades.arq.br/2018/01/17/zoneamento-e-planos-diretores-v-2-0-parte-1/>. Acesso em: 14 de jan. de 2021.
SCHAMA, S. Landscape and Memory. London: Harper Collins. 1995.
TANSCHEIT, P. Cidades compactas e o difícil equilíbrio entre densidade e verticalização. Archdaily, 2016. Disponível em: <https://www.archdaily.com.br/br/798773/cidades-compactas-e-o-dificil-equilibrio-entre-densidade-e-verticalizacao>. Acesso em: 14 de jan. de 2021.
UNESCO – UNITED NATIONS EDUCATIONAL, SCIENTIFIC AND CULTURAL ORGANIZATION. Educação Patrimonial. 2017. Disponível em: <https://www.cvunesco.org/educacao/educacao-patrimonial>. Acesso em: 14 de jan. de 2021.